A Responsabilidade Institucional e a Cultura Organizacional como Vetores de Adoecimento
- Idelfonso Carvalho

- 18 de ago.
- 4 min de leitura

Muito se fala sobre os indivíduos adoecidos, mas pouco se discute sobre os contextos que adoecem. A ênfase excessiva nos fatores internos — como predisposição genética, fragilidades pessoais ou histórico familiar — costuma servir, ainda que involuntariamente, como argumento para transferência de responsabilidade institucional. No entanto, é nas dinâmicas interpessoais, nos modelos de liderança e nas formas de organização do trabalho que frequentemente se encontram os elementos mais impactantes para a saúde mental dos trabalhadores.
Ambientes laborais marcados por controle excessivo, metas inatingíveis, instabilidade contratual, ausência de canais de escuta e valorização exclusivamente numérica do desempenho são verdadeiras incubadoras de sofrimento psíquico. Nesse sentido, o que está em jogo não é apenas a patologia do sujeito, mas também a patologia da cultura corporativa, que normaliza a exaustão, glorifica a hiperprodutividade e deslegitima o sofrimento.
O reconhecimento da doença mental como doença relacionada ao trabalho ainda enfrenta obstáculos importantes. Há um descompasso entre o que os estudos acadêmicos e as evidências clínicas já demonstram, e o que é efetivamente reconhecido no plano administrativo e judicial. Por vezes, o sofrimento é invisibilizado ou desqualificado, e o trabalhador, ao buscar proteção, é submetido a perícias inconsistentes, pareceres genéricos ou exigências documentais que se tornam barreiras à reparação.
É justamente por isso que a atuação pericial precisa ser rigorosa, ética e sensível à complexidade do sofrimento psíquico. Não se trata de emitir laudos pautados apenas em sintomas, mas de construir uma narrativa técnico-científica que articule dados clínicos com a realidade funcional, possibilitando ao Judiciário compreender o quadro dentro de sua totalidade. A boa perícia é aquela que não se contenta com a verificação de diagnósticos, mas investiga, com profundidade, a repercussão da doença na vida laboral do periciando.
Para ilustrar os impactos objetivos que essas estruturas organizacionais podem gerar sobre a saúde mental dos trabalhadores, vale mencionar um caso analisado onde uma profissional inserida em ambiente de cobrança intensiva, metas inflexíveis e ausência de suporte institucional desenvolveu quadro clínico compatível com transtorno ansioso-depressivo. Esse exemplo serve como referência para compreender a complexa relação entre contexto laboral e adoecimento psíquico.
A Jurisprudência e o Reconhecimento Progressivo do Nexo Concausal
Felizmente, observa-se nos últimos anos uma tendência crescente na jurisprudência trabalhista e previdenciária brasileira em reconhecer o nexo técnico concausal em casos de transtornos mentais. Decisões têm reafirmado que o trabalho, mesmo não sendo o agente causador exclusivo do adoecimento, pode atuar como fator determinante de agravamento, legitimando a concessão de benefícios acidentários, estabilidade provisória e reparações indenizatórias.
Os tribunais superiores já se posicionaram no sentido de que a prova do nexo não exige certeza absoluta, mas sim congruência técnica entre o histórico clínico, a exposição ao fator de risco e a evolução funcional do quadro. Quando essas peças se encaixam, o nexo deve ser reconhecido — e o ônus de demonstrar que o trabalho não teve qualquer influência sobre o adoecimento recai, como regra, sobre o empregador.
Nesse cenário, o conceito de concausa adquire centralidade. Ele permite proteger o trabalhador mesmo quando há outros fatores envolvidos — como histórico familiar, vulnerabilidades preexistentes ou eventos extralaborais. A concausa não nega a complexidade da doença mental; ao contrário, a reconhece como multifatorial, mas assegura que o trabalho não seja tratado como irrelevante dentro dessa equação.
Prevenção, Reabilitação e o Papel das Empresas
Embora o reconhecimento judicial do adoecimento seja importante, ele chega, muitas vezes, tardiamente. A verdadeira proteção à saúde mental no trabalho precisa ocorrer antes da judicialização, e isso requer políticas institucionais efetivas, não apenas discursos vazios em manuais de compliance.
As empresas precisam ir além da instalação de salas de descompressão ou da distribuição pontual de cartilhas motivacionais. É necessário investir em prevenção de riscos psicossociais, por meio de programas permanentes de saúde mental, estruturação de setores de escuta qualificada, revisão periódica de metas e indicadores, formação de lideranças com foco em gestão humana e, sobretudo, institucionalização do cuidado como valor organizacional.
A reabilitação também precisa ser vista como parte do processo. O trabalhador adoecido não pode ser descartado ou forçado a retornar à mesma função que desencadeou sua crise. A readaptação responsável, quando possível, deve ser construída com base em laudos técnicos, avaliações multiprofissionais e escuta ativa do próprio trabalhador. Em muitos casos, o remanejamento de função é mais viável e humano do que o afastamento prolongado.
Considerações Finais
O caso analisado neste artigo, embora hipotético em seus detalhes, representa uma realidade amplamente vivida por milhares de trabalhadores e trabalhadoras no país. O sofrimento mental relacionado ao trabalho não é ficção, não é exagero, nem é sinal de fragilidade moral. É a expressão de um modelo produtivo que muitas vezes ignora os limites humanos em nome de uma suposta eficiência.
Reconhecer a concausalidade, quando tecnicamente demonstrada, é um ato de justiça. Reconhecer a incapacidade temporária, quando comprovada, é ato de proteção social. E conduzir perícias médicas com rigor, clareza e imparcialidade é um compromisso ético com o direito à saúde e à dignidade no trabalho.
A sociedade ainda caminha na construção de ambientes laborais emocionalmente sustentáveis. Até lá, a atuação pericial seguirá sendo uma das poucas pontes entre o sofrimento vivido e o direito reconhecido. Cabe aos profissionais envolvidos — médicos, advogados, magistrados, gestores — exercer esse papel com a responsabilidade que ele exige. Porque por trás de cada processo há um ser humano que adoeceu tentando apenas cumprir seu dever.
Vamos juntos construir um novo caminho.
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