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O direito de recusar transfusões de sangue: análise da decisão do STF e seus impactos jurídicos, médicos e sociais

  • Foto do escritor: Idelfonso Carvalho
    Idelfonso Carvalho
  • 18 de ago.
  • 6 min de leitura
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Introdução


A recente decisão (agosto 2025) do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento com repercussão geral, consolidou um marco relevante na interface entre direito, medicina e religião no Brasil. A Corte reconheceu que pacientes adultos e capazes têm o direito de recusar transfusões de sangue por motivos religiosos, mesmo em situações de risco de morte. O julgamento, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, foi realizado em plenário virtual e contou com ampla adesão dos ministros, estabelecendo tese que deverá ser observada por todos os tribunais do país.

Essa decisão projeta efeitos práticos profundos: desde a segurança jurídica de médicos e hospitais até a necessidade de adaptação do Sistema Único de Saúde (SUS) para fornecer alternativas terapêuticas às transfusões. Além disso, levanta debates sensíveis sobre os limites da autonomia individual, o papel do Estado na proteção da vida e as implicações quando se trata de menores ou incapazes.

O presente artigo busca analisar, de forma ampla e detalhada, os múltiplos aspectos desse julgamento, situando-o em uma perspectiva jurídica, médica, bioética e social, para compreender seus efeitos e desafios.



O contexto jurídico e constitucional


A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 5º, inciso VI, a liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos e assegurando proteção aos locais de culto e suas liturgias. Além disso, o artigo 1º, inciso III, consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Esses dois princípios – liberdade religiosa e dignidade humana – muitas vezes dialogam em harmonia, mas em determinadas situações entram em tensão, especialmente quando a recusa de um tratamento médico coloca em risco a própria vida do indivíduo.


A decisão do STF reforça que, para adultos capazes, a autonomia individual deve ser respeitada. Assim, o Estado não pode obrigar alguém a submeter-se a uma transfusão de sangue contra sua vontade, mesmo que essa recusa possa levar ao óbito. Essa compreensão está em sintonia com a tradição do direito constitucional brasileiro de valorizar a autodeterminação, desde que não se trate de vulneráveis.


Outro ponto de relevância jurídica é a extensão da decisão: por se tratar de julgamento com repercussão geral, todos os tribunais do país deverão observar a tese fixada, evitando decisões contraditórias que, até então, marcavam a jurisprudência.



A posição do relator e a fundamentação do STF


O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, destacou que a liberdade de consciência e de crença não se restringe ao foro íntimo, mas inclui as escolhas práticas que decorrem dessa fé, como a recusa de tratamentos médicos. Ele registrou que cabe ao médico respeitar a vontade expressa do paciente adulto e capaz, desde que esteja devidamente registrada, seja por manifestação oral, escrita ou por meio de diretivas antecipadas de vontade.

No entanto, o ministro fez ressalvas importantes. A recusa do paciente não autoriza o médico a abandonar o atendimento. Pelo contrário, persiste a obrigação de utilizar todos os recursos terapêuticos compatíveis com a crença professada, zelando pela vida com os meios disponíveis.

Outro ponto sublinhado foi a necessidade de manifestação clara e inequívoca do paciente. Na ausência dessa manifestação, prevalece o dever médico de preservar a vida, adotando todas as medidas necessárias, inclusive a transfusão de sangue.

Essa linha de raciocínio traz equilíbrio: valoriza a autonomia, mas resguarda o dever de proteção quando não há certeza sobre a vontade do paciente.



Os limites da decisão: menores, incapazes e relativamente incapazes


Embora o julgamento tenha fixado tese em favor de adultos capazes, o tema ganha contornos mais complexos quando se trata de menores ou incapazes.

No caso de crianças e adolescentes, a Constituição (art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecem o princípio da proteção integral e o dever prioritário de resguardar a vida e a saúde. Assim, a recusa dos pais ou responsáveis em autorizar transfusões pode ser afastada pelo Estado ou pelo médico, quando a vida estiver em risco.

Para incapazes absolutos, como interditados judicialmente, a decisão cabe ao curador. Contudo, prevalece a obrigação de não expor o tutelado à morte, podendo o médico intervir e buscar respaldo judicial se necessário.

Já em relação aos relativamente incapazes, como adolescentes entre 16 e 18 anos, pródigos ou pessoas em certas condições de saúde mental, existe espaço intermediário: a manifestação de vontade deve ser considerada, mas não é absoluta em situações de iminente risco de morte.

Portanto, embora o STF tenha avançado no reconhecimento da autonomia de adultos capazes, a proteção da vida continua prevalecendo nos casos de vulnerabilidade jurídica ou etária.



Implicações médicas e éticas


Para os profissionais de saúde, a decisão traz avanços importantes em termos de segurança jurídica. Antes, havia receio de responsabilização caso o médico respeitasse a recusa e o paciente viesse a óbito. Agora, com a decisão do STF, fica claro que, se a recusa estiver devidamente registrada, o médico não poderá ser acusado de omissão ou negligência.

Contudo, a obrigação de não abandonar o paciente permanece. O médico deve empregar todos os recursos disponíveis, respeitando os limites da crença religiosa. Isso inclui a utilização de alternativas terapêuticas, como expansores de volume, eritropoetina, técnicas cirúrgicas de conservação sanguínea, entre outras.

Do ponto de vista bioético, a decisão reafirma a importância do princípio da autonomia, mas em equilíbrio com os demais princípios – beneficência, não maleficência e justiça. A recusa de transfusões por Testemunhas de Jeová é um dos exemplos mais debatidos na bioética mundial, justamente por envolver convicções religiosas profundas e, ao mesmo tempo, risco à vida.



O papel do Estado e o SUS


Um dos desdobramentos mais relevantes da decisão é a determinação de que o Estado deve custear alternativas terapêuticas quando necessárias, inclusive fora do domicílio do paciente. Isso significa que o SUS terá que ampliar sua capacidade de oferecer tratamentos que dispensem o uso de sangue, em respeito à liberdade religiosa.

Esse ponto traz desafios logísticos e financeiros. Nem todos os hospitais dispõem de recursos ou tecnologia avançada para medicina sem sangue. Caberá ao Estado, portanto, criar protocolos, capacitar equipes e garantir equidade no acesso, para que esse direito não se torne apenas formal, mas efetivo.



Impactos sociais e culturais


A decisão do STF também repercute no campo social, pois reforça a pluralidade cultural e religiosa do país. As Testemunhas de Jeová representam uma comunidade que há décadas luta pelo reconhecimento do direito de recusar transfusões, e agora obtém respaldo definitivo da mais alta Corte.

Isso, contudo, não deve ser lido como um privilégio, mas como concretização de um direito constitucional. A liberdade religiosa protege tanto maiorias quanto minorias, assegurando que o Estado brasileiro não imponha práticas contrárias às convicções de fé de cada indivíduo.

Além disso, a decisão pode incentivar a evolução da medicina sem sangue, tendência já consolidada em alguns países. Essa abordagem, inicialmente voltada para atender demandas religiosas, hoje é reconhecida também por seus benefícios clínicos, como menor risco de infecções e complicações transfusionais.


Críticas e desafios


Apesar de seu avanço, a decisão também gera debates críticos. Alguns argumentam que a vida deveria sempre prevalecer sobre a vontade individual, especialmente em situações de risco iminente. Outros apontam que o custeio de alternativas pelo SUS pode gerar sobrecarga financeira, em um sistema já pressionado por demandas crescentes.

Há ainda o risco de insegurança em situações de emergência, quando não há tempo hábil para verificar diretivas antecipadas ou colher manifestações do paciente. Nesse ponto, o risco de judicialização permanece, cabendo aos tribunais futuros decidir casos concretos à luz da tese fixada.



Considerações finais


A decisão do Supremo Tribunal Federal representa um marco no reconhecimento da autonomia do paciente adulto e capaz, reafirmando a liberdade religiosa como direito fundamental e garantindo segurança jurídica aos médicos e hospitais. Ao mesmo tempo, estabelece limites claros: em menores e incapazes, a proteção da vida prevalece. Além disso, impõe ao Estado o dever de custear alternativas às transfusões, o que representa tanto um avanço civilizatório quanto um desafio de gestão pública.

Mais do que uma vitória de uma comunidade religiosa específica, a decisão simboliza o respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana em suas múltiplas dimensões. A sociedade brasileira, plural e multicultural, sai fortalecida ao ver assegurado o direito de cada indivíduo decidir sobre o próprio corpo e a própria fé, desde que em condições de plena consciência e capacidade.

Por fim, a decisão também lança luz sobre a necessidade de diálogo permanente entre direito, medicina e ética. O equilíbrio entre autonomia e proteção da vida continuará sendo um desafio, mas o STF deu um passo importante para que esse debate se faça dentro de parâmetros claros e respeitosos, dignos de um Estado democrático de direito.



Vamos juntos construir um novo caminho.




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