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Responsabilidade, Risco e Justiça: Quando a Tragédia Pessoal se Transforma em Processo Judicial

  • Foto do escritor: Idelfonso Carvalho
    Idelfonso Carvalho
  • 2 de nov.
  • 6 min de leitura
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Introdução

Em uma sociedade cada vez mais judicializada, tornou-se habitual que toda tragédia pessoal, especialmente quando envolve a perda de uma vida, encontre nas portas do Fórum o seu desfecho simbólico. A morte, que antes habitava o domínio da fatalidade, migrou para o território da responsabilidade civil.E a dor — legítima, humana, compreensível — passou a ser traduzida em ações indenizatórias.

Esse movimento reflete uma transformação cultural: a recusa da fatalidade e a transferência da culpa. No lugar de aceitar o acaso, busca-se um culpado institucional. Quando a tragédia ocorre, alguém deve pagar — de preferência, quem tem CNPJ. Mas será que a justiça deve ser instrumento de consolo emocional? E, mais grave, será que o Judiciário deve ser ocupado por causas em que o infortúnio é, na verdade, consequência direta da imprudência individual?


O direito de ação e o dever de prudência

O acesso à Justiça é um direito fundamental. Mas o uso abusivo do direito de ação pode se tornar o seu próprio oposto: um desvio que distorce o sentido da Justiça. A ação judicial não é remédio para a dor, nem substituto da consciência. O processo deve ser ato de razão, não de emoção.

Transformar toda perda em demanda é confundir a Justiça com o destino — e sobrecarregar um sistema já exaurido.


A cadeia da culpa e o apagamento da escolha individual

Quando um indivíduo age de forma arriscada — seja ao dirigir alcoolizado, pilotar uma motocicleta sem equipamentos adequados ou ignorar as regras de segurança — ele exerce sua liberdade, mas também assume o risco inerente à sua decisão.

Contudo, quando o resultado trágico ocorre, a narrativa social costuma inverter a lógica da culpa: o foco desloca-se do “quem causou” para o “quem não evitou”.

Hospitais, médicos e o próprio Estado tornam-se réus substitutivos da fatalidade.

É como se a vida devesse garantir reembolso para toda escolha mal calculada.


O trauma de alta energia e o mito da negligência

Na medicina de urgência, há eventos em que o desfecho é selado no instante do impacto.

O trauma de alta energia, típico de colisão de motocicleta, provoca lesões incompatíveis com a vida — rupturas cerebrais, hemorragias internas e destruição tecidual imediata.Mesmo o melhor hospital, com o cirurgião mais habilidoso, nada poderia fazer além de atestar o inevitável.

Confundir inevitabilidade com negligência é um equívoco comum — e perigoso. A medicina é uma ciência de meios, não de milagres. O profissional tem o dever de agir, não de garantir resultados.


A ética do risco e a pedagogia da responsabilidade

A liberdade de agir pressupõe a obrigação de responder.

Quem opta por comportamentos sabidamente perigosos não pode, depois, terceirizar o risco que assumiu.

Educar para o risco é dever de todos: da família, da escola e do Estado.

Mas culpar o hospital por um destino traçado pela própria imprudência é inverter a lógica da ética.

Não há justiça quando a imprudência pessoal se torna fonte de lucro coletivo.


A banalização da Justiça e o peso do Judiciário

A cada ano, milhares de ações de suposta responsabilidade médica abarrotam os tribunais.

Boa parte delas nasce não de um erro real, mas da busca emocional por culpados e compensações.

Cada processo infundado consome tempo, peritos, servidores e magistrados — recursos que deveriam atender causas urgentes, como saúde pública, violência doméstica e infância abandonada.

Quando a Justiça é chamada a corrigir o destino, ela deixa de ser Justiça e se torna palco de litígios existenciais.

E, nesse cenário, perde-se o essencial: a racionalidade do Direito.



A indústria da indenização

A dor humana não deveria ser uma oportunidade de negócio.

Entretanto, surgem cada vez mais ações orientadas por interesses financeiros, movidas por intermediários que exploram o sofrimento das famílias com promessas de “indenizações milionárias”.

Essas demandas, fundadas em narrativas sentimentais e não em provas técnicas, corrompem o propósito da Justiça.

Transformam a tragédia em moeda e a emoção em estratégia.

A consequência é devastadora:

  • médicos acuados,

  • hospitais financeiramente fragilizados,

  • e famílias revitimizadas por um processo longo, caro e infrutífero.

A dor vira litígio, o luto vira audiência e, ao final, a verdade médica é soterrada pelo ruído das acusações.


Medicina defensiva e medo institucional

O efeito colateral dessa cultura é a medicina defensiva. Profissionais agem com medo — não da morte do paciente, mas da ação judicial. Exames desnecessários, internações prolongadas e condutas excessivamente conservadoras passam a ser a regra.

O custo é alto:

  • aumenta o gasto público;

  • reduz-se a eficiência do sistema de saúde;

  • e o paciente, que deveria ser o centro do cuidado, torna-se vítima da burocracia do medo.

O médico que teme agir não cura; apenas assina protocolos.


O erro lógico do nexo causal absoluto

Nem toda morte implica erro. Nem todo insucesso terapêutico decorre de culpa. A medicina lida com probabilidades, não certezas.

A tentativa de estabelecer um nexo causal absoluto entre conduta e resultado é falha de origem: ignora a complexidade biológica e o acaso.

Responsabilizar o médico por cada desfecho ruim é como culpar o bombeiro pelo incêndio que não conseguiu apagar. O dever é de tentativa diligente — nunca de garantia impossível.


A moral do resultado e a falência da prudência

Vivemos a era da moral do resultado. O sucesso virou sinônimo de mérito; o insucesso, de culpa. Mas a vida não obedece a essa lógica binária. Há erros que salvam e acertos que não bastam. O Direito, assim como a medicina, precisa aceitar o caráter trágico da existência humana.

Quando a Justiça se recusa a admitir a fatalidade, ela abandona a prudência e abraça o populismo jurídico.


A educação que falhou

Muitos buscam indenização não porque foram lesados, mas porque nunca foram educados para a responsabilidade. Vivemos numa sociedade que ensina direitos, mas silencia sobre deveres. Formamos cidadãos prontos para exigir, mas não para responder.

A verdadeira prevenção de tragédias não está no Judiciário, mas na educação. É nas escolas e nas famílias que se aprende o valor da prudência e o limite da liberdade.



Justiça seletiva e sofrimento coletivo

O paradoxo é cruel: quem realmente sofre com negligência estrutural — a população pobre, sem acesso à saúde e à defesa técnica — tem pouco espaço nos tribunais. Já quem tem voz, advogados e tempo, ocupa o sistema com demandas fabricadas de sofrimento.

Assim, o Judiciário se torna um espelho distorcido da desigualdade: a dor legítima é silenciada, enquanto a dor midiática é multiplicada.


Responsabilidade institucional: até onde vai o dever de cuidado

É justo exigir que hospitais e profissionais ajam com zelo e competência. Mas é injusto impor-lhes a obrigação de evitar a morte quando ela decorre de causas inevitáveis.

O dever do médico é tentar. O dever do hospital é oferecer meios. O dever do paciente é cooperar com a própria segurança. Nenhum desses deveres é absoluto — e a culpa não pode ser distribuída conforme o tamanho do bolso.


Quando o processo é punição

Mesmo quando o médico é absolvido, o simples fato de responder a um processo já representa punição. São anos de desgaste emocional, financeiro e reputacional. A absolvição chega tarde, quando o dano à confiança profissional já é irreversível.

E o Estado, por sua vez, paga caro pela ineficiência: perícias, audiências, laudos e tramitações consomem recursos que poderiam ser aplicados em políticas públicas preventivas.



O papel do perito e da razão técnica

O perito judicial é a voz da ciência dentro do processo. Sua função é resgatar a objetividade em meio à emoção. Ao fundamentar suas conclusões em protocolos, evidências e fisiopatologia, o perito devolve à Justiça o que ela nunca deveria perder: a racionalidade técnica.

É preciso valorizar o trabalho pericial e proteger o espaço da prova científica, sob pena de transformar a Justiça em arena de narrativas sentimentais.


Para além da indenização: o resgate da consciência

Nenhuma indenização devolve a vida. Nenhum valor monetário preenche o vazio da perda. A ideia de que o dinheiro pode equilibrar o sofrimento é um equívoco ético.

A verdadeira reparação nasce do aprendizado. O acidente, a imprudência e a tragédia devem servir de alerta, não de oportunidade de lucro. A Justiça deve ensinar, não apenas compensar.


A Justiça não é refúgio da irresponsabilidade

Quando o Judiciário se torna palco de litígios fundados em imprudência pessoal, o Estado deixa de julgar e passa a acolher culpas transferidas. A Justiça não pode ser refúgio de quem erra, nem instrumento de quem lucra com a dor.

O processo deve existir para corrigir o erro verdadeiro, não para mascarar o erro individual. A tragédia humana exige empatia; o processo judicial exige prova. Confundir uma coisa com a outra é injustiça disfarçada de compaixão.

A maturidade social começa quando reconhecemos que liberdade e responsabilidade são indissociáveis. O cidadão que compreende o risco e age com prudência é o verdadeiro guardião de sua própria vida.

Enquanto não houver educação para o dever, haverá excesso de processos e escassez de justiça.



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