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Transtornos Mentais no Trabalho: Concausalidade, Incapacidade e os Limites da Função Laboral

  • Foto do escritor: Idelfonso Carvalho
    Idelfonso Carvalho
  • 18 de ago.
  • 4 min de leitura
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Em um mundo que exige produtividade acelerada e permanente disponibilidade, os limites da saúde mental humana vêm sendo colocados à prova de maneira constante. É cada vez mais evidente que, para além das doenças físicas tradicionalmente reconhecidas como ocupacionais, os transtornos psíquicos associados ao ambiente de trabalho emergem como uma das principais causas de afastamento, sofrimento e incapacidade laboral. Esse fenômeno, por vezes silencioso e subestimado, revela-se em quadros clínicos que se instalam gradualmente, tomando corpo na rotina de sujeitos expostos a pressões contínuas, relações hierárquicas adoecidas, metas inalcançáveis e ausência de suporte emocional.


Nos últimos anos, a perícia médica judicial tem sido chamada a opinar sobre casos em que o sofrimento mental ultrapassa os muros do consultório clínico e adentra os tribunais. Em tais contextos, o perito não se limita a reconhecer um diagnóstico. Sua função exige a análise de nexo técnico, capacidade laboral, relação temporal com o vínculo profissional e, muitas vezes, a delicada avaliação da existência de concausalidade, isto é, da contribuição do trabalho como fator agravador ou perpetuador de um quadro que talvez não tenha se originado nele.


Imagine-se, por hipótese, uma trabalhadora inserida há mais de uma década em um setor de atendimento telefônico, desempenhando atividades que envolvem cobrança ativa, metas diárias, exigência de produtividade cronometrada e monitoramento constante da performance. A princípio, trata-se de uma atividade operacional como tantas outras, revestida de aparente normalidade. No entanto, o cotidiano revela-se gradualmente mais exaustivo. A cobrança insistente por resultados, a ausência de pausas, o tom autoritário de lideranças imediatas, a rigidez nos indicadores e a pressão sutil (ou declarada) por permanência no posto mesmo em dias de fragilidade emocional vão moldando um ambiente insalubre – não em sua estrutura física, mas em seu conteúdo simbólico.


A trabalhadora começa a apresentar sintomas difusos. Primeiro, vem a insônia e o desânimo; depois, a taquicardia diante do telefone que toca, os tremores nas mãos, os episódios de choro silencioso entre uma ligação e outra. A sintomatologia avança com dores sem causa orgânica definida, crises de ansiedade, distúrbios de concentração e falhas de memória. Em determinado momento, ela procura ajuda médica. Recebe um diagnóstico de transtorno ansioso-depressivo, é medicada, afastada por alguns dias, mas retorna – e tudo recomeça. Essa cena se repete inúmeras vezes. A cada retorno, a recaída. A cada tentativa de resiliência, um novo adoecimento.


A lógica institucional que deveria acolher esse sofrimento, muitas vezes o agrava. A readaptação funcional é recusada, a empatia é substituída por advertências formais, e o adoecer, em vez de suscitar cuidado, passa a ser interpretado como resistência ou má vontade. É nesse cenário que o papel da perícia judicial em saúde mental se torna crucial. O perito é convocado a avaliar não apenas se há uma doença, mas se ela é incapacitante, e se existe uma relação técnica entre o trabalho desempenhado e o quadro clínico apresentado.

No exemplo hipotético que aqui se analisa, embora a trabalhadora negue histórico psiquiátrico prévio, relata ter convivido com situações familiares disfuncionais na adolescência – um parente alcoólatra, episódios de insegurança doméstica, experiências que poderiam representar fatores de vulnerabilidade. Contudo, é no ambiente de trabalho que o adoecimento se instala de maneira concreta e verificável. Nesse ponto, a concausalidade se apresenta como uma chave interpretativa. A legislação previdenciária brasileira reconhece que, mesmo quando o trabalho não é a causa única do adoecimento, sua contribuição significativa para o agravamento do quadro o torna tecnicamente ligado à condição incapacitante.


O reconhecimento da concausa não exige prova de exclusividade, mas de contribuição relevante. E é exatamente esse o papel da perícia: verificar, com base em elementos clínicos, funcionais, temporais e documentais, se o trabalho teve influência concreta no desencadeamento ou agravamento do transtorno. Essa avaliação se dá à luz de critérios clínicos consagrados – como os descritos no DSM-5 –, e também a partir da análise do contexto laboral, da narrativa da parte, da evolução do quadro e do exame psíquico direto.

Em casos como esse, a conclusão pericial frequentemente aponta para uma incapacidade parcial e temporária, restrita ao exercício da atividade originária, mas que não impede a autora de, eventualmente, ser reabilitada em funções de menor exigência emocional ou cognitiva. Ainda assim, o reconhecimento do nexo concausal é de fundamental importância, pois permite que o trabalhador tenha acesso a proteções legais específicas, como a estabilidade provisória e benefícios acidentários.


O perito, neste contexto, atua como ponte entre o sofrimento subjetivo e o reconhecimento objetivo da incapacidade. Seu papel não é julgar moralmente a parte, tampouco atuar como terapeuta. Cabe-lhe, com isenção, técnica e ética, interpretar os sinais clínicos à luz das exigências legais. Um laudo bem elaborado, baseado em análise rigorosa da documentação, da história de vida e da condição atual do examinado, tem o poder de iluminar o juízo e garantir que o processo respeite os direitos fundamentais em jogo – especialmente a dignidade do trabalho e a proteção da saúde.


É importante frisar que a cronicidade dos quadros ansiosos e depressivos não deve ser confundida com irreversibilidade. O afastamento temporário, quando necessário e bem conduzido, pode ser terapêutico e restaurador. Por outro lado, a exposição contínua ao fator desencadeante, sem readaptação ou intervenção, tende a consolidar um padrão de sofrimento resistente ao tratamento.


Por fim, é necessário refletir sobre o sentido mais profundo dessa discussão. Quando um ambiente de trabalho adoece seus trabalhadores, há algo de estruturalmente errado na lógica de gestão. A presença de sofrimento mental recorrente em uma equipe ou setor não pode ser vista como exceção, mas como indicador de risco coletivo, exigindo intervenções institucionais mais amplas. A atuação pericial, nesse sentido, não apenas serve à justiça de um caso específico, mas contribui, indiretamente, para a promoção de ambientes laborais mais saudáveis, humanos e justos.



Vamos juntos construir esse novo caminho.




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